Post by marcofreitas86 on Aug 23, 2009 17:22:42 GMT 1
Após o lançamento de “Live at Red Rocks (1995)”, a Dave Matthews Band voltou ao estúdio para escrever e produzir de raiz uma dezena de novas canções. O resultado foi um dos álbuns mais obscuros da banda, contribuindo para que “Before These Crowded Streets” sirva de charneira para delinear o fim de uma era… e o eclodir de uma nova.
BEFORE THESE CROWDED STREETS
Editado: 28 Abril de 1998
Tempo total: 70:14
Editora: RCA
Produtor: Steve Lillywhite
Faixas:
1. "Pantala Naga Pampa" – 0:40 »
2. "Rapunzel" – 6:00
3. "The Last Stop" – 6:57
4. "Don’t Drink The Water" – 7:01 (Interlude 1 »)
5. "Stay (Wasting Time)" – 5:07 »
6. "Halloween" –7:28
7. "The Stone" – 7:28 (Interlude 2 »)
8. "Crush" – 8:09
9. "The Dreaming Tree" – 8:48 (Interlude 3 »)
10. "Pig" – 6:57 (Interlude 4 »)
11. "Spoon" – 7:33 (The Last Stop Outro)
Gravado em: The Plant Studios, Sausalito, CA & Electric Lady Studios, New York, NY,
É irónico que esta introdução esteja incluída em “Before These Crowded Streets”, já que ao contrário do que acontece nos discos anteriores, a temática e sonoridade dominante deste trabalho não é de todo relaxante ou impregnada de paz. Os “problemas” e “preocupações” que Matthews apela que deixemos para traz são logo recuperados em faixas agonizantes como “The Last Stop”, “The Dreaming Tree”, “The Stone” ou até mesmo “Don't Drink The Water”. A sonoridade adensa-se e as letras denunciam uma crise identitária cuja origem pode estar no eclodir de uma nova crise humanitária. Porém, no meio de um panorama obscuro nem tudo se perdeu: ainda subsiste a esperança e alegria em “Crush”, “Pig”, “Rapunzel” ou “Stay”, momentos isolados onde reencontramos o ID gerador da banda, quer na temática quer na sonoridade dominante.
“Before These Crouded Streets” serve de protótipo para uma agonizante viagem pelos aspectos mais sombrios da banda. Mas de que modo é que estas diferenças se traduzem nos materiais musicais? Porque é que este disco é frequentemente visto sob um pano de fundo negro, noctívago e lutuoso? Estas são as questões centrais a desenvolver nesta análise.
Após a introdução “Pantala Naga Pampa” (que significa “cobra nas calças” em Tamil coloquial) avançamos directamente para “Rapunzel”, o primeiro grande “monstro” desta colecção. Esta faixa cimenta a teoria de que Dave Matthews Band é uma banda com fortes reminiscências funk: as interpolações da guitarra eléctrica (possivelmente tocada por Reynolds) bem como as constantes alternâncias rítmicas desenvolvidas por Carter na bateria são factores que denunciam estas influências. Aliás em toda a faixa encontramos várias mudanças de compasso: a introdução em 5/4; o verso está na sua globalidade em 4/4, exceptuando o momento em que Dave canta “I do…my best… for you…I do…love” – está em 6/4; o refrão “I think the world of you, all of my heart I do” obedece também à time signature de 6/4. Esta mudança brusca de compassos é a razão pela qual “Rapunzel” é das faixas mais complexas em termos rítmicos, salientando deste modo uma das características fundamentais que compõem uma pseudo sonoridade DMB.
A versatilidade vocal de Dave Matthews atinge um dos seus momentos hegemónicos no decorrer deste disco. Em algumas faixas Dave canta de forma visceral, assemelhando-se em alguns casos como um protótipo de canto gutural (a desenvolver posteriormente), enquanto em outras faixas aperfeiçoa os seus falsettos e canta de forma “doce”. No caso específico de “Rapunzel”, Dave efectua uma melodia que poderia ser muito simplista se o vocalista não resolvesse trauteá-la em diferentes oitavas:
A imagem anterior apresenta um fragmento do verso de “Rapunzel”: os dois quadrados assinalam as mesmas notas (sibemol e sol), porém em oitavas diferentes. Estes saltos de oitava e nona são característicos do tratamento vocal em Dave Matthews (o refrão de “Satellite” inclui um dos exemplos mais óbvios desta técnica).
No final desta música surge um elemento novo à textura sonora da banda: o som do piano. Intensifica-se aqui uma próxima relação entre Butch Taylor e a banda, uma colaboração que durou cerca de 10 anos. Neste disco o papel do piano mostra-se muito superficial, cingindo-se nas suas duas aparições (”Rapunzel” e “Crush”) a pequenos apontamentos que preenchem a textura musical. Só no álbum “Stand Up” (2005) é que encontramos faixas construídas sobre um acompanhamento harmónico do piano, especialmente em faixas como “Steady As We Go”, “Smooth Rider” e “Out Of Our Hands” (a analisar na parte 7). O saxofonista Leroi volta a ser o rei desta faixa, com uma série de passagens muito virtuositas que servem de charneira para a faixa seguinte.
Em “The Last Stop” encontramos uma tentativa de emular um ambiente musical com características orientais. Estas sonoridades não são novas na carreira da banda, já que “Minarets” encontramos este tipo de escalas (ver parte 1). Este exotismo musical resulta (entre outros) do recorrente uso de ornamentação melismática, bem como da alteração de alguns graus de uma escala Maior, de modo a salientar algumas características da música oriental como o salto de 2ªaumentada.
A sonoridade tendencialmente oriental desta faixa pode provocar alguma polémica, principalmente quando percepcionamos a temática da mesma:
Podemos depreender que esta faixa surge como uma critica à eminente guerra entre o ocidente e oriente: a sonoridade oriental ganha força com a referência ao “east”; por outro lado, as referências bíblicas que aludem à crucificação de Cristo lembram a razão da maioria destas guerras - a luta em nome de Deus - جهاد ou gihād:
Estávamos em 1998, quatro anos antes dos ataques de 11 de Setembro de 2001. É interessante lembrar que em 1998 a Inglaterra e América uniram forças com o objectivo de bombardear alguns pontos estratégicos do Iraque, naquela que foi apelidada de operação Desert Fox. Estavam a surgir os antecedentes que contribuíram para as primeiras guerras do século XXI.
A forma visceral como Dave canta esta letra obscura mostra-nos outra faceta interessante da técnica vocal de Dave Matthews. Já percepcionamos resíduos desta técnica em “Rhyme And Reason”, porém nesta faixa Dave vai bem mais longe ao passar uma noção angustiante, quase proporcional ao grito ofegante de dor através das notas mais agudas. Durante o decorrer desta música (especialmente no fim) notamos a existência de mais uma sonoridade estranha à banda: o som de um banjo. Esta sonoridade é praticamente exclusiva a este disco, com a excepção de casos pontuais como a faixa “Aligator Pie” do disco “Big Whisky And The GrooGrux King” (a desenvolver na parte 8).
A participação de Bélla Fleck a tocar banjo estende-se até à faixa seguinte “Don't Drink The Water”, que para espanto de muitos foi assinalada como primeiro single do disco. A temática desta música dá azo a diferentes interpretações: se para alguns esta fala sobre a luta contra o apartheid em África do Sul, a opção que parece ser mais sensata aponta para os antagonismos entre o autoproclamado mundo “civilizado” e os índios norte-americanos, cantada sob o prisma dos colonizadores:
Após o processo de independência dos Estados Unidos, os conflitos entre os colonizadores e os povos indígenas aumentaram significativamente. A resistência da civilização indígena prolongou-se até o final do século XIX, época em que a destruição das populações nativas da América do Norte estava eminente. A referência obscura cantada por Dave - “Don’t Drink The Water, There’s Blood In The Water” - lembra o sangue indígena derramado pela tirania do homem moderno durante estes conflitos históricos.
A temática desta faixa é transposta para os elementos musicais através de sombrias interjeições do saxofone e violino, auxiliadas por melodias vocais que parecem emular uma vocalidade imaginária destes povos (principalmente no fim da faixa). Estas melodias vocais finais ganham um renovado ímpeto com a inclusão de Alanis Morisette. Em 1998 a cantora gozava de uma enorme popularidade, essencialmente devido às elevadas vendas (mais de 30 milhões de cópias) do seu primeiro álbum internacional “Jagged Little Pill”, produzido por Glen Ballard (o mesmo produtor de “Everyday”, ver parte 5), lançado pela editora “Maverick” cuja maior associada era Madonna. A escolha de Morissette para participar neste disco poderá constituir uma estratégia de marketing? Para obtermos resposta a esta questão teríamos de perguntar directamente à banda ou ao produtor Lillywhite... Mas se tivermos em conta a elevada exposição mediática que a cantora vinha a receber nos últimos anos, há que admitir que esta seria uma oportunidade perfeita para transportar essa atenção para a banda. Por outro lado pode ser demasiado redutor ver a participação de Morissette como um mero golpe publicitário, já que não podemos destituir a heterogeneidade vocal desta artista, cuja forma de cantar e expressar vai de encontro com a sonoridade geral deste registo. A escolha desta faixa como primeiro single prova a necessidade da banda em desbravar novos elementos musicais que contrastam com as escolhas dos discos anteriores.
O segundo single deste disco foi “Stay (Wasting Time)”, faixa onde deixamos as temáticas pesadas para voltarmos momentaneamente à superfície e luminosidade. A letra desta música faz uma descrição pormenorizada de momentos vividos entre o sujeito poético e a sua cara-metade, abordando a já recorrente temática de aproveitar e valorizar cada momento da vida. Curiosamente esta é a única faixa deste disco onde encontramos o modelo composicional de um riff inicial que se prolonga até ao verso, fórmula basilar para a construção da maioria das músicas dos primeiros dois registos. Sendo esta a única faixa construída nesses moldes, nota-se que em “Before These Crowded Streets” a banda decidiu aventurar-se por novos caminhos composicionais. Um novo elemento sonoro surge com a participação especial das “Lovely Ladies”, grupo de três cantoras afro-americanas que providenciam uma serie de background vocals que culmina numa Jam colectiva (banda e cantoras) no fim da faixa.
O ambiente festivo, quase apoteótico de “Stay” entra em dicotomia geral com “Halloween”, faixa que marca o retorno à obscuridade. Esta faixa faz parte da colecção de composições iniciais da banda (1991), cujo único registo encontrava-se em versão de concerto no EP “Recently”. Numa fase inicial esta faixa foi recuperada e gravada em estúdio com o objectivo de ser incluída na banda sonora do filme “Scream 2”. Satisfeitos com o resultado final, a banda decidiu adicioná-la neste disco. “Halloween” destaca-se no catálogo da banda como a faixa mais agressiva em termos vocais, aproximando-se em alguns momentos do canto gutural, técnica vocal que produz um som rouco, comummente referido como canto de garganta, rasgado ou gritado.
A letra obscura e rancorosa desta faixa parece desconstruir uma visão harmoniosa e funcional do amor. Segundo algumas publicações, nomeadamente “The Dave Matthews Band: Step Into The Light” de Morgan Delancey (2001), esta faixa foi escrita para uma ex-namorada de Matthews após esta ter recusado pedido de casamento. Ainda mais curioso será confirmar que esta letra não se encontra presente no booklet do disco, talvez porque esta é das únicas faixas da banda onde encontramos palavras impróprias para audiências mais jovens como o uso do verbo to fuck.
No fim da faixa encontramos um novo elemento à paisagem musical deste disco com a interpretação de Kronos Quartet, grupo de cordas friccionadas especializado em interpretações da chamada música contemporânea vanguardista. Esta colisão entre a música de tradição clássica/erudita com a música de Dave Matthews Band é auxiliada pela prestação final de Matthews a executar uma série de melodias com voz de peito, técnica comummente associada à música de tradição clássica/erudita.
A passagem para a faixa “The Stone” é executada por este quarteto de cordas através de uma harmonia não funcional, no sentido em que assistimos a um acumular de tensões dissonantes que nunca se resolvem. Antes de mais há que referir que os conceitos de dissonante ou consonante são extremamente subjectivos, e neste caso, para apelidar este segmento de dissonante apoio-me no facto dos acordes incluírem várias sétimas e nonas sobrepostas sem qualquer resolução ou curso harmónico definido (ao contrário do que acontece na grande maioria da música pop). Uma noção de música dissonante vai de encontro com uma ideia de desequilíbrio, tensão e conflito… sentimentos que se enquadram na temática descrita em ambas faixas. A orquestação foi escrita por John D'earth, o grande responsável por dar um ambiente inquietante a ambas faixas. O próprio D'earth faz algumas interpolações no trompete com surdina no inicio da secção instrumental de “Halloween”.
A letra desta faixa constitui mais um daqueles exemplos em que a temática pode sugerir diferentes interpretações: “The Stone” pode ser uma referência à lápide de um defunto que reflecte sobre o tempo em que passou em vida; por outro lado existem outras interpretações que apontam para as temáticas bíblicas, nomeadamente a alusão ao “ that Fools Mistake” que podemos interpretar como uma alusão indirecta a Judas Iscariot. A adopção de temáticas bíblicas não é nova na carreira da banda, já que em algumas faixas como “The Last Stop”, “Minarets” e “Bartender” encontramos esta tendência (nesta última encontramos uma menção directa a Judas).
Em termos musicais, ”The Stone” inicia-se com um riff (em 6/8) que ao contrário da maioria das faixas desenvolvidas com esta técnica, não se prolonga até ao refrão. A textura musical desta música é dominada pela orquestração executada pelo já referido Kronos Quartet com uma harmonia densa. É curioso observar que no fim da faixa Leroi executa no saxofone um segmento de “Can't Help Falling In Love”, faixa inicialmente popularizada por Elvis Presley, recuperada na Jam final desta faixa.
Para já é interessante referir que todas as faixas que analisamos até agora incluem a participação especial de um ou mais convidados especiais. Parafraseando o produtor Lillywhite, «com este disco o objectivo era trazer elementos novos, trazer convidados para o estúdio»… em termos musicais foram estes convidados que trouxeram novas texturas musicais ao trabalho da banda, contribuindo para que este fosse aclamado por muitos fãs e críticos como o trabalho mais cosmopolita do grupo. Por outro lado, o elevado uso de convidados faz com que seja rara a reprodução destas músicas ao vivo com os elementos originais (exceptuando casos muito pontuais em que estes artistas tocaram ao vivo com a banda).
A nossa análise continua após um segundo interlúdio instrumental que nos guia até a próxima faixa: “Crush”. Muito já se falou do papel de Dave, Carter, Tinsley e Leroi… muito já se falou da participação especial de alguns convidados neste disco… porém existe um nome que até aqui não teve tempo para brilhar: o baixista Stefan Lesssard. O elemento mais novo da banda (que em 1998 tinha apenas 24 anos) desenvolveu o seu processo criativo ao escrever em conjunto com Matthews algumas das faixas chave deste disco, tais como “The Dreaming Tree” ou “The Last Stop”. Nos dois primeiros álbuns a prestação de Stefan reduzia-se à marcação rítmica e harmónica da harmonia base, salvo algumas excepções. Neste disco Stefan aventura-se com linhas de baixo mais autónomas e com riffs que se tornaram a imagem de marca de DMB. Observemos o riff de “Crush”:
O que torna este riff especial é o ritmo tendencialmente irregular presente no mesmo, que é de resto uma das características mais comuns dos segmentos de baixo de Stefan. Após esta introdução a textura musical adensa-se com interpolações de saxofone, guitarra eléctrica, violino,piano e orgão (ambos instrumentos de tecla tocados por Butch Taylor) enquanto Dave canta a doce letra de “Crush”.
Mais uma vez temos de fazer uma menção honrosa à forma como Dave conduz os trechos vocais, não só através de letras que nunca se repetem mas também de um complexo jogo rítmico que marca a individualidade de cada verso/refrão. A imagem seguinte apresenta um complexo padrão rítmico num dos refrões:
“The Dreaming Tree” continua a complexa odisseia rítmica com uma time signature de 7/8. A auxiliar esta complicação rítmica encontramos uma das prestações mais versáteis de Carter Beauful a executar uma série de rudimentos que destabilizam uma noção de pulsação. Mais uma vez há que salientar o papel de Stefan com uma estupenda linha de baixo que entra em destaque durante o verso. Em termos líricos deparamo-nos com uma das temáticas mais introspectivas de Dave Mathews Band, através de uma alusão à necessidade de retorno a um passado perdido que entra em contradição directa com o presente caótico:
É desta busca de uma aura perdida que encontramos o titulo deste disco, como uma tentativa de recriar ou pelo menos lembrar um mundo perdido que é valorizado pelo sujeito poético em detrimento do presente. Este tipo de dicotomias foi explorado anteriormente em faixas como “Proudest Monkey”.
Após mais um interlúdio instrumental (que por sinal é parecido com "Anyone Seen The Bridge", secção transitória usada nos concertos entre as faixas "So Much To Say" e "Too Much") encontramos “Pig”, faixa que marca um momento ligeiro antes da introspecção final de “Spoon”. Em termos temáticos voltamos a encontrar a já recorrente temática “Carpe Diem”, elucidada em frases como “Don't burn the day away” ou “Come sister, my brother Shake up your bones, shake up your feet”. Por outro lado há quem acredite que existe uma razão muito mais obscura para esta faixa, cuja inspiração surgiu após Dave ver um programa televisivo onde porcos eram queimados com o objectivo de testar as suas reacções à dor. Em termos musicais não existem muitos apontamentos novos a adicionar… apenas o facto desta ser a faixa onde Boyd Tinsley surge com maior destaque.
Após um quarto interlúdio musical deparamo-nos com a derradeira faixa deste disco: “Spoon”. A letra desta música volta a lembrar o quão ambígua e holística pode ser uma letra de DMB, com referências a diferentes símbolos como a cruz de Jesus, e a sentimentos como a alegria e a tristeza:
No fim tudo parece convergir para um optimismo, para a busca de um futuro esperançoso. Em termos musicais reencontramos Alanis Morissette, desta vez com um papel bem mais alargado que em “Don’t drink the water”. Bélla Fleck volta a tanger o seu banjo até o eclodir de mais uma JAM final. É interessante percepcionar que todas as faixas deste disco acabam com uma JAM, o que explica o aumento da duração geral das faixas, principalmente quando comparamos com os tempos dos dois primeiros registos.
Tal como a capa do disco indica, “Before These Crowded Streets” é um trabalho escuro cujas temáticas heterogéneas são unificadas nesta contínua obra musical que trespassa diferentes sentimentos, imagens, filosofias e convicções. Neste disco falou-se da lenda de “Rapunzel”; falou-se da eminente guerra entre o ocidente e o oriente; fizemos uma reflexão sobre os quase extintos índios norteamericanos; encontramos sentimentos distorcidos resultantes da recusa amorosa; falamos de nostalgia; falamos de amor e ainda tivemos tempo para fazermos mais uma menção à recorrente temática “Carpe Diem”… Em termos musicais este foi o disco cujas sonoridades experimentais atingiram uma enorme complexidade, principalmente devido à inclusão de novos elementos sonoros importados de artistas convidados. Alguns destes elementos como a inclusão do banjo constituem um factor que diferencia a paisagem musical deste de outros discos lançados pela banda.
Esta foi a primeira análise deste conjunto de discografias comentadas cuja ordem seguiu uma perspectiva diacrónica (ou seja, com a ordem das faixas sequenciada ao longo do tempo). Esta opção deve-se ao facto da grande maioria das faixas estarem conectadas por pequenos interlúdios instrumentais ou por fragmentos transitórios que garantem a fluência musical deste trabalho. Ao todo existem cinco interlúdios musicais, entre os quais um conclusivo que se inicia alguns segundos após terminar “Spoon”. Para além destes pequenos trechos existem algumas faixas que estão ligadas entre si através de sons quotidianos (como exemplo Rapunzel » The Last Stop) ou através de uma pequena secção instrumental (como exemplo Halloween » The Stone). Tendo em conta estas características únicas na discografia da banda, podemos afirmar que “Before These Crowded Streets” é muito mais que um conjunto de músicas aleatórias… é uma obra completa que se inicia e completa sobre si mesma, proporcionando ao ouvinte um círculo perfeito. Tal como na introdução deste disco, Dave volta a falar em discurso directo para o ouvinte nos momentos finais:
É deste modo que se completa este disco… é deste modo que se encerra uma próspera era da carreira da banda.
Curiosidades:
A voz de Leroi Moore é ouvida no telefonema incluído na transição de “Rapunzel” para “The Last Stop”;
O título do álbum surge na letra de “The Dreaming Three”;
A letra de “Halloween” não está presente no booklet do disco;
Singles:
1. "Don’t Drink The Water"
Editado: 1998
2. "Stay (Wasting Time)"
Editado: 1998
3. "Crush"
Editado: 1998
4. "Rapunzel"
Editado: 1998
Em 99-00 a banda voltou ao estúdio para gravar um novo trabalho com a supervisão de Steve Lilliwhite. As letras destas novas faixas mostravam-se ainda mais obscuras que as de “Before These Crowded Streets” e como consequência a editora começou a a exercer pressões para que a banda produzisse um novo “Tripping Billies”.
“The vibe was not very good. Dave had to dig into his soul... and what was coming out was pretty interesting"
»Steve Lillywhite
In the end, the way to get out of that was to move away from the whole thing... including Lillywhite (…) Apart from moving on, after six mouths I was open to everything"
»Stefan Lessard
De modo a tentar encontrar o single perfeito, Matthews reuniu-se com Glen Ballard, o mesmo produtor que levou à ribalta "Jagged Little Pill" de Alanis Morisette. Após uma semana de trabalho Matthews e Ballard escreveram não três mas doze músicas novas. Apesar de algumas das suas faixas terem sido apresentadas ao vivo, as sessões com Lillywhite ficaram esquecidas nas gavetas do estúdio e as novas canções foram lançadas no álbum"Everyday" com a produção a cargo de Glen Ballard. O resultado foi… imprevisível.
"Everyday" made us turn more toward what was happening in the music around then... made us more like other stuff”
»Dave Matthews
Citações de "The Road to Big Whisky - FUSE"
CONTINUA NA PARTE 5
BEFORE THESE CROWDED STREETS
Editado: 28 Abril de 1998
Tempo total: 70:14
Editora: RCA
Produtor: Steve Lillywhite
Faixas:
1. "Pantala Naga Pampa" – 0:40 »
2. "Rapunzel" – 6:00
3. "The Last Stop" – 6:57
4. "Don’t Drink The Water" – 7:01 (Interlude 1 »)
5. "Stay (Wasting Time)" – 5:07 »
6. "Halloween" –7:28
7. "The Stone" – 7:28 (Interlude 2 »)
8. "Crush" – 8:09
9. "The Dreaming Tree" – 8:48 (Interlude 3 »)
10. "Pig" – 6:57 (Interlude 4 »)
11. "Spoon" – 7:33 (The Last Stop Outro)
Gravado em: The Plant Studios, Sausalito, CA & Electric Lady Studios, New York, NY,
“Come and relax now
Put your troubles down
No need to bear the weight of your worries
Just let them all fall away.”
É irónico que esta introdução esteja incluída em “Before These Crowded Streets”, já que ao contrário do que acontece nos discos anteriores, a temática e sonoridade dominante deste trabalho não é de todo relaxante ou impregnada de paz. Os “problemas” e “preocupações” que Matthews apela que deixemos para traz são logo recuperados em faixas agonizantes como “The Last Stop”, “The Dreaming Tree”, “The Stone” ou até mesmo “Don't Drink The Water”. A sonoridade adensa-se e as letras denunciam uma crise identitária cuja origem pode estar no eclodir de uma nova crise humanitária. Porém, no meio de um panorama obscuro nem tudo se perdeu: ainda subsiste a esperança e alegria em “Crush”, “Pig”, “Rapunzel” ou “Stay”, momentos isolados onde reencontramos o ID gerador da banda, quer na temática quer na sonoridade dominante.
“Before These Crouded Streets” serve de protótipo para uma agonizante viagem pelos aspectos mais sombrios da banda. Mas de que modo é que estas diferenças se traduzem nos materiais musicais? Porque é que este disco é frequentemente visto sob um pano de fundo negro, noctívago e lutuoso? Estas são as questões centrais a desenvolver nesta análise.
Após a introdução “Pantala Naga Pampa” (que significa “cobra nas calças” em Tamil coloquial) avançamos directamente para “Rapunzel”, o primeiro grande “monstro” desta colecção. Esta faixa cimenta a teoria de que Dave Matthews Band é uma banda com fortes reminiscências funk: as interpolações da guitarra eléctrica (possivelmente tocada por Reynolds) bem como as constantes alternâncias rítmicas desenvolvidas por Carter na bateria são factores que denunciam estas influências. Aliás em toda a faixa encontramos várias mudanças de compasso: a introdução em 5/4; o verso está na sua globalidade em 4/4, exceptuando o momento em que Dave canta “I do…my best… for you…I do…love” – está em 6/4; o refrão “I think the world of you, all of my heart I do” obedece também à time signature de 6/4. Esta mudança brusca de compassos é a razão pela qual “Rapunzel” é das faixas mais complexas em termos rítmicos, salientando deste modo uma das características fundamentais que compõem uma pseudo sonoridade DMB.
A versatilidade vocal de Dave Matthews atinge um dos seus momentos hegemónicos no decorrer deste disco. Em algumas faixas Dave canta de forma visceral, assemelhando-se em alguns casos como um protótipo de canto gutural (a desenvolver posteriormente), enquanto em outras faixas aperfeiçoa os seus falsettos e canta de forma “doce”. No caso específico de “Rapunzel”, Dave efectua uma melodia que poderia ser muito simplista se o vocalista não resolvesse trauteá-la em diferentes oitavas:
A imagem anterior apresenta um fragmento do verso de “Rapunzel”: os dois quadrados assinalam as mesmas notas (sibemol e sol), porém em oitavas diferentes. Estes saltos de oitava e nona são característicos do tratamento vocal em Dave Matthews (o refrão de “Satellite” inclui um dos exemplos mais óbvios desta técnica).
No final desta música surge um elemento novo à textura sonora da banda: o som do piano. Intensifica-se aqui uma próxima relação entre Butch Taylor e a banda, uma colaboração que durou cerca de 10 anos. Neste disco o papel do piano mostra-se muito superficial, cingindo-se nas suas duas aparições (”Rapunzel” e “Crush”) a pequenos apontamentos que preenchem a textura musical. Só no álbum “Stand Up” (2005) é que encontramos faixas construídas sobre um acompanhamento harmónico do piano, especialmente em faixas como “Steady As We Go”, “Smooth Rider” e “Out Of Our Hands” (a analisar na parte 7). O saxofonista Leroi volta a ser o rei desta faixa, com uma série de passagens muito virtuositas que servem de charneira para a faixa seguinte.
Em “The Last Stop” encontramos uma tentativa de emular um ambiente musical com características orientais. Estas sonoridades não são novas na carreira da banda, já que “Minarets” encontramos este tipo de escalas (ver parte 1). Este exotismo musical resulta (entre outros) do recorrente uso de ornamentação melismática, bem como da alteração de alguns graus de uma escala Maior, de modo a salientar algumas características da música oriental como o salto de 2ªaumentada.
A sonoridade tendencialmente oriental desta faixa pode provocar alguma polémica, principalmente quando percepcionamos a temática da mesma:
“Fire grows from the east
How is this
Hate so deep
Lead us all so blindly killing killing
Fools we are
If hates the gate to peace
This is the last stop
For raining tears
War
The only way to peace
I don’t fall for that”
Podemos depreender que esta faixa surge como uma critica à eminente guerra entre o ocidente e oriente: a sonoridade oriental ganha força com a referência ao “east”; por outro lado, as referências bíblicas que aludem à crucificação de Cristo lembram a razão da maioria destas guerras - a luta em nome de Deus - جهاد ou gihād:
“Gracious even God
Bloodied on the cross, your sins are washed enough
A mother’s cry
“Is hate so deep?
Must a baby’s bones this hungry fire feed?”
Estávamos em 1998, quatro anos antes dos ataques de 11 de Setembro de 2001. É interessante lembrar que em 1998 a Inglaterra e América uniram forças com o objectivo de bombardear alguns pontos estratégicos do Iraque, naquela que foi apelidada de operação Desert Fox. Estavam a surgir os antecedentes que contribuíram para as primeiras guerras do século XXI.
A forma visceral como Dave canta esta letra obscura mostra-nos outra faceta interessante da técnica vocal de Dave Matthews. Já percepcionamos resíduos desta técnica em “Rhyme And Reason”, porém nesta faixa Dave vai bem mais longe ao passar uma noção angustiante, quase proporcional ao grito ofegante de dor através das notas mais agudas. Durante o decorrer desta música (especialmente no fim) notamos a existência de mais uma sonoridade estranha à banda: o som de um banjo. Esta sonoridade é praticamente exclusiva a este disco, com a excepção de casos pontuais como a faixa “Aligator Pie” do disco “Big Whisky And The GrooGrux King” (a desenvolver na parte 8).
A participação de Bélla Fleck a tocar banjo estende-se até à faixa seguinte “Don't Drink The Water”, que para espanto de muitos foi assinalada como primeiro single do disco. A temática desta música dá azo a diferentes interpretações: se para alguns esta fala sobre a luta contra o apartheid em África do Sul, a opção que parece ser mais sensata aponta para os antagonismos entre o autoproclamado mundo “civilizado” e os índios norte-americanos, cantada sob o prisma dos colonizadores:
“Away, away, you have been banished.
Your land is gone, and given to me.
And here I will spread my wings.
Yes, I will call this home.
Whats this you say, you feel a right to remain?
Then stay and I will bury you.
Whats that you say, your fathers spirit still lives in this place?
Well, I will silence you.”
Após o processo de independência dos Estados Unidos, os conflitos entre os colonizadores e os povos indígenas aumentaram significativamente. A resistência da civilização indígena prolongou-se até o final do século XIX, época em que a destruição das populações nativas da América do Norte estava eminente. A referência obscura cantada por Dave - “Don’t Drink The Water, There’s Blood In The Water” - lembra o sangue indígena derramado pela tirania do homem moderno durante estes conflitos históricos.
A temática desta faixa é transposta para os elementos musicais através de sombrias interjeições do saxofone e violino, auxiliadas por melodias vocais que parecem emular uma vocalidade imaginária destes povos (principalmente no fim da faixa). Estas melodias vocais finais ganham um renovado ímpeto com a inclusão de Alanis Morisette. Em 1998 a cantora gozava de uma enorme popularidade, essencialmente devido às elevadas vendas (mais de 30 milhões de cópias) do seu primeiro álbum internacional “Jagged Little Pill”, produzido por Glen Ballard (o mesmo produtor de “Everyday”, ver parte 5), lançado pela editora “Maverick” cuja maior associada era Madonna. A escolha de Morissette para participar neste disco poderá constituir uma estratégia de marketing? Para obtermos resposta a esta questão teríamos de perguntar directamente à banda ou ao produtor Lillywhite... Mas se tivermos em conta a elevada exposição mediática que a cantora vinha a receber nos últimos anos, há que admitir que esta seria uma oportunidade perfeita para transportar essa atenção para a banda. Por outro lado pode ser demasiado redutor ver a participação de Morissette como um mero golpe publicitário, já que não podemos destituir a heterogeneidade vocal desta artista, cuja forma de cantar e expressar vai de encontro com a sonoridade geral deste registo. A escolha desta faixa como primeiro single prova a necessidade da banda em desbravar novos elementos musicais que contrastam com as escolhas dos discos anteriores.
O segundo single deste disco foi “Stay (Wasting Time)”, faixa onde deixamos as temáticas pesadas para voltarmos momentaneamente à superfície e luminosidade. A letra desta música faz uma descrição pormenorizada de momentos vividos entre o sujeito poético e a sua cara-metade, abordando a já recorrente temática de aproveitar e valorizar cada momento da vida. Curiosamente esta é a única faixa deste disco onde encontramos o modelo composicional de um riff inicial que se prolonga até ao verso, fórmula basilar para a construção da maioria das músicas dos primeiros dois registos. Sendo esta a única faixa construída nesses moldes, nota-se que em “Before These Crowded Streets” a banda decidiu aventurar-se por novos caminhos composicionais. Um novo elemento sonoro surge com a participação especial das “Lovely Ladies”, grupo de três cantoras afro-americanas que providenciam uma serie de background vocals que culmina numa Jam colectiva (banda e cantoras) no fim da faixa.
O ambiente festivo, quase apoteótico de “Stay” entra em dicotomia geral com “Halloween”, faixa que marca o retorno à obscuridade. Esta faixa faz parte da colecção de composições iniciais da banda (1991), cujo único registo encontrava-se em versão de concerto no EP “Recently”. Numa fase inicial esta faixa foi recuperada e gravada em estúdio com o objectivo de ser incluída na banda sonora do filme “Scream 2”. Satisfeitos com o resultado final, a banda decidiu adicioná-la neste disco. “Halloween” destaca-se no catálogo da banda como a faixa mais agressiva em termos vocais, aproximando-se em alguns momentos do canto gutural, técnica vocal que produz um som rouco, comummente referido como canto de garganta, rasgado ou gritado.
“And in this dream
Tell us are you satisfied with fucking
Oh walk away
Don’t walk away
I’m talking to you
Love is hell
Love this Ill tame you”
A letra obscura e rancorosa desta faixa parece desconstruir uma visão harmoniosa e funcional do amor. Segundo algumas publicações, nomeadamente “The Dave Matthews Band: Step Into The Light” de Morgan Delancey (2001), esta faixa foi escrita para uma ex-namorada de Matthews após esta ter recusado pedido de casamento. Ainda mais curioso será confirmar que esta letra não se encontra presente no booklet do disco, talvez porque esta é das únicas faixas da banda onde encontramos palavras impróprias para audiências mais jovens como o uso do verbo to fuck.
No fim da faixa encontramos um novo elemento à paisagem musical deste disco com a interpretação de Kronos Quartet, grupo de cordas friccionadas especializado em interpretações da chamada música contemporânea vanguardista. Esta colisão entre a música de tradição clássica/erudita com a música de Dave Matthews Band é auxiliada pela prestação final de Matthews a executar uma série de melodias com voz de peito, técnica comummente associada à música de tradição clássica/erudita.
A passagem para a faixa “The Stone” é executada por este quarteto de cordas através de uma harmonia não funcional, no sentido em que assistimos a um acumular de tensões dissonantes que nunca se resolvem. Antes de mais há que referir que os conceitos de dissonante ou consonante são extremamente subjectivos, e neste caso, para apelidar este segmento de dissonante apoio-me no facto dos acordes incluírem várias sétimas e nonas sobrepostas sem qualquer resolução ou curso harmónico definido (ao contrário do que acontece na grande maioria da música pop). Uma noção de música dissonante vai de encontro com uma ideia de desequilíbrio, tensão e conflito… sentimentos que se enquadram na temática descrita em ambas faixas. A orquestação foi escrita por John D'earth, o grande responsável por dar um ambiente inquietante a ambas faixas. O próprio D'earth faz algumas interpolações no trompete com surdina no inicio da secção instrumental de “Halloween”.
“...long way, ah, from that fools mistake.
And now forever pay, no run, I will run and I’ll be ok.
I was just wondering if you’d come along.
Hold up my head when my head won’t hold on.
Ill do the same if the same what you want,
But if not I’ll go, I will go a long...
...long way, to bury the past for I dont want to pay.
Oh how I wish, this, to turn back the clock and do over again."
A letra desta faixa constitui mais um daqueles exemplos em que a temática pode sugerir diferentes interpretações: “The Stone” pode ser uma referência à lápide de um defunto que reflecte sobre o tempo em que passou em vida; por outro lado existem outras interpretações que apontam para as temáticas bíblicas, nomeadamente a alusão ao “ that Fools Mistake” que podemos interpretar como uma alusão indirecta a Judas Iscariot. A adopção de temáticas bíblicas não é nova na carreira da banda, já que em algumas faixas como “The Last Stop”, “Minarets” e “Bartender” encontramos esta tendência (nesta última encontramos uma menção directa a Judas).
Em termos musicais, ”The Stone” inicia-se com um riff (em 6/8) que ao contrário da maioria das faixas desenvolvidas com esta técnica, não se prolonga até ao refrão. A textura musical desta música é dominada pela orquestração executada pelo já referido Kronos Quartet com uma harmonia densa. É curioso observar que no fim da faixa Leroi executa no saxofone um segmento de “Can't Help Falling In Love”, faixa inicialmente popularizada por Elvis Presley, recuperada na Jam final desta faixa.
Para já é interessante referir que todas as faixas que analisamos até agora incluem a participação especial de um ou mais convidados especiais. Parafraseando o produtor Lillywhite, «com este disco o objectivo era trazer elementos novos, trazer convidados para o estúdio»… em termos musicais foram estes convidados que trouxeram novas texturas musicais ao trabalho da banda, contribuindo para que este fosse aclamado por muitos fãs e críticos como o trabalho mais cosmopolita do grupo. Por outro lado, o elevado uso de convidados faz com que seja rara a reprodução destas músicas ao vivo com os elementos originais (exceptuando casos muito pontuais em que estes artistas tocaram ao vivo com a banda).
A nossa análise continua após um segundo interlúdio instrumental que nos guia até a próxima faixa: “Crush”. Muito já se falou do papel de Dave, Carter, Tinsley e Leroi… muito já se falou da participação especial de alguns convidados neste disco… porém existe um nome que até aqui não teve tempo para brilhar: o baixista Stefan Lesssard. O elemento mais novo da banda (que em 1998 tinha apenas 24 anos) desenvolveu o seu processo criativo ao escrever em conjunto com Matthews algumas das faixas chave deste disco, tais como “The Dreaming Tree” ou “The Last Stop”. Nos dois primeiros álbuns a prestação de Stefan reduzia-se à marcação rítmica e harmónica da harmonia base, salvo algumas excepções. Neste disco Stefan aventura-se com linhas de baixo mais autónomas e com riffs que se tornaram a imagem de marca de DMB. Observemos o riff de “Crush”:
O que torna este riff especial é o ritmo tendencialmente irregular presente no mesmo, que é de resto uma das características mais comuns dos segmentos de baixo de Stefan. Após esta introdução a textura musical adensa-se com interpolações de saxofone, guitarra eléctrica, violino,piano e orgão (ambos instrumentos de tecla tocados por Butch Taylor) enquanto Dave canta a doce letra de “Crush”.
Mais uma vez temos de fazer uma menção honrosa à forma como Dave conduz os trechos vocais, não só através de letras que nunca se repetem mas também de um complexo jogo rítmico que marca a individualidade de cada verso/refrão. A imagem seguinte apresenta um complexo padrão rítmico num dos refrões:
“The Dreaming Tree” continua a complexa odisseia rítmica com uma time signature de 7/8. A auxiliar esta complicação rítmica encontramos uma das prestações mais versáteis de Carter Beauful a executar uma série de rudimentos que destabilizam uma noção de pulsação. Mais uma vez há que salientar o papel de Stefan com uma estupenda linha de baixo que entra em destaque durante o verso. Em termos líricos deparamo-nos com uma das temáticas mais introspectivas de Dave Mathews Band, através de uma alusão à necessidade de retorno a um passado perdido que entra em contradição directa com o presente caótico:
“Standing here
The old man said to me
Long before these crowded streets
Here stood my dreaming tree
Below it he would sit
For hours at a time
Now progress takes away
What forever took to find”
É desta busca de uma aura perdida que encontramos o titulo deste disco, como uma tentativa de recriar ou pelo menos lembrar um mundo perdido que é valorizado pelo sujeito poético em detrimento do presente. Este tipo de dicotomias foi explorado anteriormente em faixas como “Proudest Monkey”.
Após mais um interlúdio instrumental (que por sinal é parecido com "Anyone Seen The Bridge", secção transitória usada nos concertos entre as faixas "So Much To Say" e "Too Much") encontramos “Pig”, faixa que marca um momento ligeiro antes da introspecção final de “Spoon”. Em termos temáticos voltamos a encontrar a já recorrente temática “Carpe Diem”, elucidada em frases como “Don't burn the day away” ou “Come sister, my brother Shake up your bones, shake up your feet”. Por outro lado há quem acredite que existe uma razão muito mais obscura para esta faixa, cuja inspiração surgiu após Dave ver um programa televisivo onde porcos eram queimados com o objectivo de testar as suas reacções à dor. Em termos musicais não existem muitos apontamentos novos a adicionar… apenas o facto desta ser a faixa onde Boyd Tinsley surge com maior destaque.
Após um quarto interlúdio musical deparamo-nos com a derradeira faixa deste disco: “Spoon”. A letra desta música volta a lembrar o quão ambígua e holística pode ser uma letra de DMB, com referências a diferentes símbolos como a cruz de Jesus, e a sentimentos como a alegria e a tristeza:
“From time to time
Minutes and hours
Some move ahead
While some lag behind
Like the baloon that rise
And then vanish
This drop of hope
That falls from his eye”
No fim tudo parece convergir para um optimismo, para a busca de um futuro esperançoso. Em termos musicais reencontramos Alanis Morissette, desta vez com um papel bem mais alargado que em “Don’t drink the water”. Bélla Fleck volta a tanger o seu banjo até o eclodir de mais uma JAM final. É interessante percepcionar que todas as faixas deste disco acabam com uma JAM, o que explica o aumento da duração geral das faixas, principalmente quando comparamos com os tempos dos dois primeiros registos.
Tal como a capa do disco indica, “Before These Crowded Streets” é um trabalho escuro cujas temáticas heterogéneas são unificadas nesta contínua obra musical que trespassa diferentes sentimentos, imagens, filosofias e convicções. Neste disco falou-se da lenda de “Rapunzel”; falou-se da eminente guerra entre o ocidente e o oriente; fizemos uma reflexão sobre os quase extintos índios norteamericanos; encontramos sentimentos distorcidos resultantes da recusa amorosa; falamos de nostalgia; falamos de amor e ainda tivemos tempo para fazermos mais uma menção à recorrente temática “Carpe Diem”… Em termos musicais este foi o disco cujas sonoridades experimentais atingiram uma enorme complexidade, principalmente devido à inclusão de novos elementos sonoros importados de artistas convidados. Alguns destes elementos como a inclusão do banjo constituem um factor que diferencia a paisagem musical deste de outros discos lançados pela banda.
Esta foi a primeira análise deste conjunto de discografias comentadas cuja ordem seguiu uma perspectiva diacrónica (ou seja, com a ordem das faixas sequenciada ao longo do tempo). Esta opção deve-se ao facto da grande maioria das faixas estarem conectadas por pequenos interlúdios instrumentais ou por fragmentos transitórios que garantem a fluência musical deste trabalho. Ao todo existem cinco interlúdios musicais, entre os quais um conclusivo que se inicia alguns segundos após terminar “Spoon”. Para além destes pequenos trechos existem algumas faixas que estão ligadas entre si através de sons quotidianos (como exemplo Rapunzel » The Last Stop) ou através de uma pequena secção instrumental (como exemplo Halloween » The Stone). Tendo em conta estas características únicas na discografia da banda, podemos afirmar que “Before These Crowded Streets” é muito mais que um conjunto de músicas aleatórias… é uma obra completa que se inicia e completa sobre si mesma, proporcionando ao ouvinte um círculo perfeito. Tal como na introdução deste disco, Dave volta a falar em discurso directo para o ouvinte nos momentos finais:
"Come in from the cold for a while
Everything will be alright
Come in from the noise for a time
Everything will be alright
Everything will be alright
For now, goodbye, friend, Goodbye."
É deste modo que se completa este disco… é deste modo que se encerra uma próspera era da carreira da banda.
Curiosidades:
A voz de Leroi Moore é ouvida no telefonema incluído na transição de “Rapunzel” para “The Last Stop”;
O título do álbum surge na letra de “The Dreaming Three”;
A letra de “Halloween” não está presente no booklet do disco;
Singles:
1. "Don’t Drink The Water"
Editado: 1998
2. "Stay (Wasting Time)"
Editado: 1998
3. "Crush"
Editado: 1998
4. "Rapunzel"
Editado: 1998
Em 99-00 a banda voltou ao estúdio para gravar um novo trabalho com a supervisão de Steve Lilliwhite. As letras destas novas faixas mostravam-se ainda mais obscuras que as de “Before These Crowded Streets” e como consequência a editora começou a a exercer pressões para que a banda produzisse um novo “Tripping Billies”.
“The vibe was not very good. Dave had to dig into his soul... and what was coming out was pretty interesting"
»Steve Lillywhite
In the end, the way to get out of that was to move away from the whole thing... including Lillywhite (…) Apart from moving on, after six mouths I was open to everything"
»Stefan Lessard
De modo a tentar encontrar o single perfeito, Matthews reuniu-se com Glen Ballard, o mesmo produtor que levou à ribalta "Jagged Little Pill" de Alanis Morisette. Após uma semana de trabalho Matthews e Ballard escreveram não três mas doze músicas novas. Apesar de algumas das suas faixas terem sido apresentadas ao vivo, as sessões com Lillywhite ficaram esquecidas nas gavetas do estúdio e as novas canções foram lançadas no álbum"Everyday" com a produção a cargo de Glen Ballard. O resultado foi… imprevisível.
"Everyday" made us turn more toward what was happening in the music around then... made us more like other stuff”
»Dave Matthews
Citações de "The Road to Big Whisky - FUSE"
CONTINUA NA PARTE 5